Pessoas sem teto sofrem com questões psíquicas 3,4 vezes mais que população geral
Debaixo do viaduto da Lagoinha, Shirley Souza dos Santos, que nas ruas é conhecida como Michele, construiu sua maloca depois de quase metade da vida de sofrimento. A mulher, de 44 anos, lida com a depressão desde o assassinato do companheiro, ainda no Espírito Santo. De lá para cá, ela deixou o curso de técnico de enfermagem, cometeu crimes, foi estuprada e se prostituiu por crack.
Ela está entre os 5.344 moradores em situação de rua mapeados no Censo Pop Rua 2022, divulgado em 2023 — estudo feito por meio de parceria entre a Prefeitura de BH e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Essa é a pesquisa mais recente sobre o tema e mostra que a população de rua está doente: 57,2% declaram que têm algum transtorno mental — a incidência é 3,4 vezes maior do que na população em geral.
Mãe de seis filhos, Michele tentou, após a perda do companheiro, ganhar a vida se prostituindo. Mas a violência foi dolorosa. “É difícil: apanhar, ser estuprada. Um cliente me levou lá na avenida Afonso Pena e me deixou pelada lá. Eu tinha 20 anos. Fui espancada dormindo. Fiquei seis meses em coma parcial no hospital. Acharam que eu ia morrer. Perdi 30% da memória”.
O episódio agravou os sintomas do transtorno mental de Michele. Ela também não tinha o apoio da família. O sonho dela é rever os filhos. “Faz 20 anos que não os vejo, tenho muita vontade de ter contato com eles”, deseja.
Das mulheres que participaram do censo, 40,8% declaram ter depressão, e 23,2% dos homens dizem sofrer da mesma doença – 2,8 e 4,5 vezes maiores do que na população em geral, respectivamente.
Para o coordenador do censo, Frederico Garcia, psiquiatra e professor da UFMG, os transtornos mentais — depressão, esquizofrenia, entre outros –, somados aos conflitos familiares, são decisivos para uma pessoa passar a viver na rua. “A família não percebe (o transtorno) ou não tem meios para diagnosticar, para prover o acesso ao tratamento”, analisa.
“Uma cascata de eventos que vão culminar, de alguma forma, com a ruptura dos laços. O convívio com o transtorno mental grave, não tratado ou mal tratado, leva esse convívio a ser problemático”, prossegue.
A interpretação do estudioso é demonstrada na pesquisa: 38,7% dos entrevistados informaram que foram impelidos a morar na rua em decorrência de problemas familiares. O segundo motivo é o uso de drogas e álcool (23,1%), seguido do desemprego — 18,9%.
Foi o que aconteceu com Ana*. Ela perdeu a mãe ainda criança e foi cuidada pela madrasta, mas o uso de drogas e os conflitos a afastaram de casa. “Fugi de casa, conheci pessoas que usavam droga”. Ela ainda passou um ano em uma clínica, chegou a voltar para casa, mas o convívio não prosperou. Francisco Oliveira, o Ceará, também foi parar na rua por causa do vício. “Fumo crack, que é o mais perigoso. Dos que vieram pra rua comigo, morreram todos”.
“Estou vegetando, não consigo viver. Nem sei explicar. Nunca fiz acompanhamento com psicólogo, com psiquiatra. Me sinto frágil demais. Já fui espancada muitas vezes, estuprada. É cruel, mas é a vida. Eu só quero paz, só quero viver, somente isso.” Thamires Santana da Silva, de 29 anos, moradora em situação de rua.
Para além das questões trazidas pelo censo, o padre Júlio Lancellotti, que luta pela população de rua há mais de 40 anos, destaca que essas pessoas sequer se sentem merecedoras de tratamento. “A forma como elas são tratadas as faz acreditar nisso: que elas não têm consciência nem dos direitos delas”, afirma. Mesmo que inviabilizados, a pesquisa mostra que 91,1% do entrevistados desejam deixar a rua. *Nome fictício
Menos de 30% vê saída em abrigos
Coroa, como Antônio Marcos é conhecido, foi morar na rua depois de ter sido traído pela mulher. “Deixei tudo para trás. Não me envolvo com os outros”, conta. No entanto, o homem, de 50 anos, não vive tão solitário, já que tem a companhia de duas cadelas: Pretinha e Loirinha. Foram elas que o fizeram desistir de morar em um abrigo de BH. “Abri a porta, e elas estavam me esperando. Ali, não tinha escolha”. As cadelas andaram por 2 km para “buscar” o tutor.
O drama de Coroa é compartilhado por vários moradores de rua: no censo, 27,7% dos entrevistados afirmam dormir em abrigos. O principal motivo citado para não passar a noite em abrigos/albergues foi a falta de segurança (28,4%), seguido da rigidez de regras e horários (20%). Para o padre Júlio Lancellotti, falta empatia na dinâmica dos abrigos. “Em uma família minimamente organizada, as regras são para garantir a convivência, mas não são impostas. Um consenso para o bem-estar”, analisa.
Pouco mais de 1% tem acesso a tratamento
Os sonhos roubados pelos conflitos familiares, pelas relações amorosas indefinidas, pelos tiros ouvidos, pelo barulho dos carros. Para Leonardo Salomão, um dos coordenadores do Censo Pop Rua 2022, esse é o retrato daqueles que atualmente vivem nas ruas. Frente às desilusões e às violências vividas, há mais uma, igualmente desoladora: a falta do auxílio psiquiátrico e psicológico. Apenas 1,2% das pessoas em situação de rua recebem tratamento em algum Centro de Referência em Saúde Mental Álcool e Drogas (Cersam).
“A violência é a forma como a sociedade contemporânea decidiu lidar com esses sujeitos, fazendo-os carregar em seu psiquismo rastros da barbárie e da crueldade”, analisa Salomão. Os números são ainda mais preocupantes quando é feita uma análise sobre toda uma década. Em 2013, 12,5% da população de rua utilizou os Cersams. Profissionais se debruçam para entender os porquês da queda e da baixa adesão, e as respostas se entrelaçam: estigma, preconceito, não identificação com os serviços e burocracia. Alguns contaram aos pesquisadores que não conseguem sequer adentrar as unidades.
“Tentam acessar os espaços formais de saúde e são barrados logo na entrada, seja por não possuírem documentos, seja por não estarem cadastrados em determinado centro de saúde, por negligência de atendimento, ou por estarem sujos, maltrapilhos”, detalha Salomão. Já a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) nega que a situação ocorra.
O padre Júlio Lancellotti também considera que a invisibilidade e os maus-tratos dispensados pela sociedade a quem mora na rua interferem na saúde mental dessas pessoas e na falta de ajuda. “As maiores opressões que a população de rua sofre, além da violência contínua e permanente, são a violência psicológica, emocional, a solidão, o abandono”, diz ele.
Sem esperança
Lorraine Souza, de 27 anos, foi morar nas ruas por causa de brigas familiares. Diagnosticada com depressão, transtorno de bipolaridade e transtorno pós-traumático, ela conta que não tem acesso a nenhum tratamento psiquiátrico a que “falta incentivo”. “Minha cabeça está bem confusa. Fico sempre com receio de acontece alguma coisa, algum imprevisto. Temo o tempo todo”, diz.
“São sujeitos invisibilizados do ponto de vista social, escanteados por diversas políticas públicas, mas percebidos do ponto de vista do incômodo, da sujeira da cidade.” Leonardo Salomão, um dos coordenadores do Censo Pop Rua 2022
Pesquisador do Censo Pop Rua, Frederico Garcia afirma que são várias as causas que levam a essa falta de assistência. E, mesmo quando ela é recebida, há falhas gigantescas. “Tem uma dificuldade de obterem acesso a um tratamento do século XXI. O tratamento e os remédios usados são do século passado, conclui.
Prefeitura de BH e governo de Minas garantem assistência
A Prefeitura de BH (PBH) afirma que os serviços do SUS são ofertados a todos, independentemente se estão ou não em situação de rua. Há atendimentos nas unidades de saúde, como centros de saúde e Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams), além de estratégias direcionadas a essa população, como o Consultório na Rua (itinerante e em campo fixo) e a Quarta da Saúde, na qual são realizadas ações de promoção à saúde nos Centros Pop das regionais Noroeste, Centro-Sul e Leste. “Há também avaliações especializadas com encaminhamento das pessoas em sofrimento mental e uso prejudicial de álcool e outras drogas para os Centros de Referência”, diz.
O governo de Minas ressalta que apoia o trabalho das prefeituras. A Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) afirma que faz o acolhimento da população de rua com sofrimento mental na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) – que tem equipe no Consultório de Rua. Todos os moradores de rua têm acesso ao SUS e à atenção primária de saúde, presentes em todos os municípios. A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) oferece apoio por meio de equipes técnicas. Em junho, foi realizado o webinário “Direitos e inclusão social das pessoas em situação de rua”. Essa população ainda tem acesso a equipamentos socioassistenciais, como os Centros Pop e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), entre outros.
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